Luzia: Fundação Joaquim Nabuco, Recife — PE (2017).
A pesquisa “Heterotopias: a cidade dos mortos”, foi desenvolvida no âmbito do Programa de Residências da Fundação Joaquim Nabuco. Seu foco foi o cemitério recifense Senhor Bom Jesus da Redenção, popularmente conhecido como cemitério de Santo Amaro, em razão do bairro onde está situado. Considerado por Gilberto Freyre como sendo um dos primeiros e mais elaborados do Brasil, possui uma capela no estilo gótico no centro de uma arquitetura radial que secciona o terreno em alas. Centenas de túmulos, jazigos, mausoléus e gavetas amalgamam o tempo povoado por sobrenomes. Múltiplas gerações coabitam as terras desta pequena e muda cidade. Ali veem-se imagens de rostos jovens de mortos, com seus cabelos engomados, gravadas em elipses de louça branca. Um nome riscado apressadamente a lápis na parede da gaveta recém-selada. Uma jardineira alimentada pelas chuvas de inverno vizinha de outra com flores de plástico.
A partir das versões em negativo das mais de mil e setecentas capturas fotográficas feitas da necrópole durante a pesquisa, um pequeno grupo foi usado como modelo para pinturas a óleo sobre telas de variados tamanhos. Telas que são apresentadas como bandeiras que tremulam sobre as paredes. As cores e sombras invertidas das imagens parecem eletrificar as estruturas funerárias de cimento, cal, azulejo e mármore. A vegetação abundante não emana tons de verde, mas um púrpura químico, feminino e intoxicante. O cemitério pulsa sob a luz de um céu negro e o tempo teima em travar. São imagens que se recusam a transcrever, como pintura, aquilo que as fotografias retêm de modo exato, apagando parte dos referentes precisos daquelas e oferecendo, em troca, impressões mais vagas do objeto pesquisado. Distanciamento do documental que gera um conhecimento sensível que somente a opacidade é capaz de criar.
A exposição é composta ainda por dois outros trabalhos. O primeiro é um conjunto de objetos fragmentários – pedaços de osso, de lápide, de vaso, de santo, de louça, de flores – dispostos sobre uma superfície em suspenso que lembra o corpo de alguém que já não está sobre uma cama esvaziada. Inventário de investigação forense que representa pessoa ou fato mais por vestígios e traços do que por inequívocas evidências encontradas. O segundo trabalho – sonoro – parece evocar o mar em dias de ressaca ou trovoadas se acumulando antes da chuva de inverno. Um som que parece vir de um futuro no qual os humanos foram extintos e tudo rui em efeito cascata. Um tempo por vir em que o concreto velho e poroso das cidades cederá e nada impedirá a queda das estruturas. As fundações serão engolidas de uma só vez pelo chão. Não se trata de uma profecia apocalíptica ou simples visão pessimista, mas o destino real dos materiais que edificam as vidas.
A exposição leva nome de mulher – “Luzia”. Pretérito imperfeito de um verbo polivalente.
Texto de Victor Mattina com colaboração de Moacir dos Anjos.
Curadoria: Moacir dos Anjos