Introdução de Cynthia Garcia:
Qualquer pessoa sensata não tem dúvida que “The Donald” é uma praga, o mais perverso ex-presidente parasita dos EUA (ou um futuro presidente parasita de segundo mandato). OMG. Estamos cravados no meio da luta acirrada entre os EUA e a China para abocanhar o título de principal potência econômica, mas os EUA, sem dúvida, têm sido o Nº 1 desde 1873, quando Levi Strauss e Jacob Davis “inventaram” a roupa azul índigo mais popular e democrática do planeta. Consequentemente, os EUA, uma terra de migrantes, criaram a cultura pop mais comercializável, desejável e influente da história da humanidade. A cultura do século XX criou lixo sem o qual não podemos viver, envenenando a terra, mas grandes coisas também foram realizadas. Minha borbulhante chama da curiosidade me levou a visitar a Rússia (comunista) durante a faculdade em 1973, depois a China (comunista) em 1979, ano em que Nixon restaurou a diplomacia com o Dragão Chinês. Nunca fui comunista, apenas uma jovem curiosa que queria ver o outro lado das coisas para ampliar minha visão. Em ambos os países, vi nos olhos de jovens russos e chineses admiração por nossos looks da cultura pop, nossas atitudes e o desejo ardente por nossos jeans... Muitas coisas que aconteceram foram previstas pelo visionário escritor americano Alvin Toffler em “Future Shock” (1970), que meu pai leu, passou para mim e sobre o qual tivemos longas discussões e discordâncias. Será que o mundo poderia realmente chegar a esse ponto?
Todos os olhos estão voltados para VOCÊ, querido EUA!
Oramos por vocês, norte-americanos,
até mesmo por aqueles que se arrependerão mais tarde se The Donald...
Todas essas consequências - pelas quais cada um de nós é, sim, culpado - levaram a humanidade ao beco sem saída que testemunhamos pessoalmente ou por meio de nossos celulares a cada segundo, em todos os lugares do nosso lindo planeta. Essa bagunça assustadora que está à nossa porta, dentro de nossos próprios corpos, no ar, na terra, no mar, leva às pinturas que vemos na exposição “desmesura” - ótimo título, a propósito - do artista brasileiro nascido no Rio, Victor Mattina, de 39 anos, altamente inteligente e talentoso, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo.
Não vou estender meu blá blá blá. Estou entusiasmada com seu trabalho - desde a primeira vez que o vi. Obviamente, você tem toda a liberdade para discordar: Não somos indivíduos sensatos, atenciosos, inteligentes e respeitosos?
Primeiro, uma longa entrevista com o artista, que termina com um depoimento de Flávio Morgado com os versos iniciais e finais de “O Monstro”. Morgado, o aclamado poeta carioca de 35 anos, escreveu o poema a pedido de seu amigo Mattina, colado na parede da galeria especialmente para a exposição individual “desmesura”.
Entrevista integral de Cynthia Garcia a Victor Mattina e Flávio Morgado:
Quais os fatores que influenciaram este seu olhar bizarro?
Victor Mattina: acho que você se refere às distorções espaciais e alusões a corpos indistinguíveis e amontoados, e tudo isto está no mundo de um modo ou de outro, infelizmente. Basta olhar nos becos, nos templos, no valão, no mangue. A realidade material é bizarra por conta própria. Não penso em apocalipse. Vejo apenas um possível esgotamento de condições para a vida humana na Terra no futuro. Quem já observou a morte que a miséria traz sabe que esta vem em marcha mais lenta, sem trombetas ou ascensor. Por isso é tão importante expandir nosso raio de atenção no mundo.
O que impulsionou sua curiosidade pela arte?
VM: pinto desde 2006. O que me impulsionou foi perceber que havia feito a escolha profissional errada durante o segundo ano de faculdade de Design. E Egon Schiele. Acho que foi através de Schiele que vi, pela primeira vez, um artista que entendia um corpo como um cabide feito de ossos pontiagudos onde deus pendura um manequim aflito, sabe? Seus desenhos na prisão são impressionantes para mim. Na escola não tive sucesso, passei batido por tudo aquilo sem nunca olhar pra trás.
O que admira em artista como Goeldi e Iberê?
VM: sob pena de reduzir dois grandes artistas a nada, gosto da fixação de Goeldi por urubus. São animais pacientes, farejam carniça durante o voo. Imagina só o que é isso. O urubu traz consigo o tempo, a ideia de que algo acontecerá em breve a alguém e que assim ele finalmente terá a chance de comer. Suponho que Goeldi achasse essa indiferença do animal pela morte bonita, engraçada até. Iberê também traz algo de fantasmagórico, mas sempre fincado no humano. Talvez exista uma dimensão mais melodramática em Iberê enquanto em Goeldi exista o farsesco, mas é apenas uma suposição.
Seu trabalho é tão forte, até mesmo devastador. Você tem alguma pintura mais significativa em exposição?
VM: Reparação (díptico), 2024, tem algo peculiar que é a utilização de apenas duas cores que se misturavam muito mal e criavam uma espécie de lama sobre a qual “talhei” duas figuras. Se olharmos por um ângulo é possível ver muitas marcas de dedos na superfície. Esta era uma tela que havia dado errado e por muito pouco seria descartada, mas eu já estava farto e comecei a batucar na superfície da tinta molhada e descobri que conseguia fazer as tintas se misturarem melhor assim. O título é sobre reconquistar algo quase perdido.
Conte-nos sobre alguns de seus projetos de 2025.
VM: Tenho dezenas de pinturas inéditas prontas e muitos projetos guardados, mas só os exibirei se tiver gente disposta a se aventurar comigo na produção. Um projeto guardado e que espera alguém disposto ao risco se chama “Aqui havia um buraco. Já se foi” [There was a hole here. It’s gone now]. Envolve ocupar um hangar com 25 infláveis de mais de quatro metros cada, um holofote, dezenas de pinturas gigantes e o direito de uso de um trecho de uma canção do Ivan Lins (risos). É o meu projeto mais estranho e sombrio. Talvez Ivan vete o projeto quando souber do que se trata, por isso tudo ainda é segredo.
Você é autodidata em arte? Vive de sua arte? Onde fica sua casa no Rio?
VM: Estudei pintura com Renato Ferrari, que me mostrou como se faz quase tudo o que sei. Isso foi de 2006 até 2009, e de lá pra cá aprendi como pude; com amigos pintores, livros de referência e uma certa dose de experimentação. Não vivo do que faço, e acho que se tirasse meu pão das pinturas elas seriam bem diferentes. Já fiz trabalhos de consultoria artística para video games e livros infantis, além de edição de vídeo e animação 3D e 2D. Faço o que posso para continuar, como a maioria dos meus colegas de profissão. Moro em São Conrado e divido ateliê com o pintor Gabriel Secchin na Cinelândia, no Centro do Rio.
Para as ideias fundamentais da exposição, quais artistas o inspiraram?
VM: As ideias para a exposição são: abundância, exuberância, delírio e tempo colapsado em um único instante. Elas vieram basicamente de:
1. O livro A infância de Jesus, do escritor e artista sul-africano J.M. Coetzee, que cita uma passagem de Dom Quixote em que o cavaleiro entra na Caverna de Montesinos, fica lá por alguns minutos e sai contando histórias magníficas sobre todos os anos que passou lá dentro, sobre palácios de cristal etc.
2. Livro do escritor francês Joris-Karl Huysmans “À rebours” (Às avessas), no qual ele relata os delírios decadentes de um aristocrata chamado Des Esseintes. Em uma das cenas, o protagonista decide cravejar o casco de uma tartaruga viva com pedras preciosas, tomando como critério para a escolha das pedras a tonalidade de suas cores e o quão incomuns elas seriam.
3. O interior da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, perto do Largo da Carioca, no centro do Rio.
4. Uma correspondência de 1925 entre Rainer Maria Rilke e seu tradutor polonês, Witold Hulewicz, na qual o poeta boêmio austríaco explica a construção da figura de um anjo para “As Elegias de Duino”. Trata-se de uma criatura capaz de ver o tempo como algo comprimido, como se, ao olhar para uma pedreira, o anjo fosse capaz de ver o magma que deu origem à pedra, o castelo erguido das rochas e as ruínas desse castelo.
Conte-nos sobre sua técnica.
VM: Recentemente meu processo começa com uma produção intensa de imagens em inteligência artificial. Escrevo linhas de comandos para o serviço Midjourney, que funciona a partir de uma plataforma de comunicação online chamada Discord e recebo as imagens em forma de mensagem. É um processo automatizado na ponta da inteligência artificial, então como não há humanos verificando nada, tomo liberdade para estressar e driblar certos parâmetros restritivos do aparelho. Por exemplo, se eu pedir para a IA me dar a imagem que representa a ideia de “probabilidade”, algo sai mal e ela me retorna qualquer coisa. O mesmo ocorre com metáforas e figuras de linguagem. Outro modo de provocar esse tipo de pane é criando uma espécie de “paradoxo lógico” onde peço (A) e ao mesmo tempo (não-A), ou seja, o contrário do que pedi inicialmente. Acrescento a esse pedido contraditório um parâmetro que gera 16 thumbnails por imagem, como numa folha de contato fotográfico. O resultado são aleatoriedades em baixa resolução. Depois o processo continua numa espécie de varredura manual que demora meses onde encontro imagens interessantes e as relaciono em grupos. Os critérios que uso para formar estes grupos são totalmente pessoais e vão desde afinidade estética a fios narrativos que apenas eu sei. Em seguida altero detalhes de cada imagem e faço outros tantos processos que também apenas eu sei para descaracterizá-la de sua origem.
Sobre pintura especificamente, sempre usei óleo sobre tela. Há pouco tempo comecei a testar pintura sobre terbrim, é um tecido com a trama quase tão fechada quanto o linho e um pouco mais barato. O resultado fica ótimo.
Para realizar as maiores pinturas, comecei pelas áreas onde as telas se tocam e pintei as junções, em seguida me concentrei em cada um dos seis pedaços isoladamente, retirando-os um a um do todo. Sabia que funcionariam juntos porque, a grosso modo, sabia exatamente o que estava fazendo desde o início. A surpresa esteve apenas e sempre no momento em que eu encarava a mancha que pintava.
Você exorciza seus demônios ao pintar? Como o Fausto de Goethe, você vendeu sua alma ao diabo?
VM: Acho um pouco engraçada essa construção do diabo como um tabelião que firma cláusulas com sangue, um produtor de contratos espúrios e garantidor de uma espécie de regimento infernal. Diz muito a respeito de como percebemos os burocratas e credores (risos). A única pessoa com quem pactuei foi minha parceira, que me aguenta nas minhas crises de consciência e que me acalma quando acho que tudo que estou construindo é um castelo de cartas. Acho que, em verdade, os meus demônios se manifestam cada vez mais nas pinturas e percebo que são boas criaturas, que gostam de brincar de supor e de fazer de conta. Não amadureceram endurecidas ou amargas, então fazem troça de mim o tempo todo, o que é ótimo.
Explique as pinturas exibidas abaixo:
“Arteriograma de Ka“: Quando vejo essa pintura eu penso imediatamente no Egito Antigo e o Barroco mineiro. Acho que ambos momentos da história humana imaginavam a transcendência como um lugar dourado pela luz solar e é daí que surge essa ideia de unir um rito mortuário aliado ao sol numa espécie de esquema.
“Elegia I (Verificação)“: Esta é, sem dúvida, a pintura sobre a qual é mais difícil dizer algo. Prefiro não fazê-lo.
“Elegia II (Falsa Lembrança)“: Como falei anteriormente, me interessa esse diálogo entre Rilke e Hulewicz sobre o anjo das Elegias de Duíno. Essa criatura que atravessa o tempo e não faz distinção de passado, presente e futuro e vê a origem, história e ruína das coisas como um único momento. É uma espécie de anjo fora da ideia de qualquer categoria humana, o que o torna monstruoso.
“O Seminarista“: Essa tela surge a partir do título de um livro homônimo do Rubem Fonseca.
“Futuro”: Adoraria dizer que estava pensando em Goeldi quando fiz esta, mas não seria verdade. Estava pensando na letra de uma canção que diz: “Pay your respects to the vultures/ For they are your future/ Our fathers and mothers have” (COIL – The Last Amethyst Deceiver)
“Missa para raios catódicos“: Nos anos noventa meu irmão e eu éramos expostos a muitos quadrinhos ingleses e americanos e era comum ver críticas aos pastores televangelistas, essas figuras que deveriam ser caricatas, mas que na realidade são assustadoras. Hoje em dia parece não haver mais espaço para satirizá-los sem cair no mesmo lugar insípido de dizer que são predadores e parasitas sabendo que isto não vai surtir qualquer efeito, e que é mesmo o aparelho de televisão quem opera uma certa magia.
“Autorretrato como devorador de art advisors“: Acho que art advisors têm muito em comum com nutricionistas. Ambos focam no cliente, cuidam de seus apetites, administram dietas e alguns até autorizam certos excessos. A alimentação se torna algo medido, um passo dado com mais critério na construção de um corpo (de trabalhos) mais forte. O devorador, pelo contrário, tem uma fome imensurável. Come o que gosta e tem gosto por tudo. Ao devorar um art advisor, a criatura abre o campo para o ressurgimento do colecionador-devorador, aquela extinta figura que se aventurava e cuja coleção era interessante principalmente porque era, em si, a manifestação de uma fome incomum.
Você vê o mundo a caminho da aniquilação?
VM: De maneira nenhuma. Penso que tanto o negacionismo climático quanto uma visão apocalipticista se acomodam numa certa inatividade. Para estes dois ou não precisamos fazer nada, ou não há nada a se fazer. Acho que há muito o que ser feito, mas as condições para a realização destas tarefas, se não observadas com atenção, tendem mesmo a piorar. Principalmente através da insistência na monocultura e em práticas que desertificam o solo, na automatização de trabalhos humanos e na não conformidade com novas leis de proteção ao trabalhador. As distopias cyberpunk eram pra servir de alerta, não como uma meta a ser batida, afinal.
Mais alguma coisa?
VM: Uma das telas da exposição chama-se Crise e Observação (CEO). Torço para que algum chief executive officer perceba o que está em jogo ali, naquela sombra em fuga.
Obrigado pela entrevista e até a próxima ;)
Depoimento do poeta Flávio Morgado abrindo com “O monstro” (para Victor Mattina), com o primeiro e o último versos do poema aqui publicado, escrito para a mostra “Desmesura” do artista plástico:
I (a dimensão)
monturo de ossos, inóspita paisagem
que nos acolhe, o ponteiro da estranheza
marca meia-noite na consciência e
seis telas declamam, no eco de sua fatura,
um grande verso de desterro.
convocação pictórica, desejo
in-familiar de pertencer a esse
limbo diante da imagem:
como a morte,
o anjo de Rilke
e a arte
comprimem o tempo
- é isto a desmesura.
VI (a escala)
vejamos que é sobre pintura,
sobre fatura, musgo-óleo
sobre o algodão cru, tintas Lukas,
MidJourney desordenado,
mãos da América do Sul.
pintura de índices, sem sigilo,
polissemia de exageros
na caverna de Platão.
somos nós,
enredados nesse avesso,
perdidos nesse labirinto de Dédalo
que damos os nomes.
presos aos nossos espectros,
só podemos temer os fantasmas
que nos assistem:
todo incêndio é Al-Shati,
todo túmulo tem sido profético.
a tela é esse jogo
na cena lúgubre,
fisionomia colorida
de nosso desamparo,
e o monstro,
a nós delegado,
supõe sua face obscura,
no que mais assume
sua vocação de fronteira.
Flávio, as pinturas de Mattina o inspiraram a escrever “O Monstro”. Conte-nos como surgiu essa simbiose arte-poesia entre vocês dois.
Flávio Morgado: Quando o Mattina me fez o convite para o texto de sua segunda individual, ele foi bem preciso, como costuma ser: “preciso que você escreva porque não quero um lugar fechado, não quero um enquadramento meramente teórico ou uma localização histórica, mas algo que funcione como a própria indefinição das telas”. O segundo passo foi visitar o ateliê e ver de perto os “monstros”. Sua pintura tinha alcançado um outro lugar. Eu que já convivia com ela desde 2011, e o nível da pesquisa e da discussão, embora sempre densos, tinham ganhado uma dimensão, de fato monstruosa. Na escala, no confronto, na materialidade, na proposta de repor esse lugar da pintura como um mundo que se expande e não se nomeia, ou como definimos de imediato: uma pintura de índices.
Mattina se embrenha na discussão pictórica com a mão suja. O que se entende como uma pintura de índices, leia-se a construção da tela como um espaço essencialmente de rastros, de conquista a partir de indícios que não se complementam em uma totalidade apaziguadora da figura, mas na sua assimilação inquieta. Foi aí que entendi que ele queria, ladeando e em diálogo, um poema. Outro espaço polissêmico, aberto, rizomático, indecidível, e que como a pintura, só se explicaria por si. O diálogo não suplementa a tela, eles se retroalimentam.
Nossa proposição é um jogo de filiações amplas, da possibilidade de irmanar duas linguagens no que elas apontam de múltiplo. Como o monstro, é em sua condição desmesurada que se impõe a sua integridade. É preciso esse deslocamento para olhá-lo de frente. O poema tenta dissecá-lo, ao passo que cada parte, na tentativa de se chegar a um lugar, mas se bifurca. Como se em resposta ao corte, Hydra multiplica suas cabeças. Como o monstro, o poema investiga a falha como uma brecha de iluminação. Menos violento que o gesto heróico de matá-lo, o poema é o espelho dessa alteridade monstruosa.