Entrevista de Mattina e Morgado à Cynthia Garcia (Newcity Brazil)

Entrevista publicada em 04.11.24, para a ocasião da individual ‘desmesura’, apenas em inglês no site Newcity Brazil. Clique aqui.

Introdução de Cynthia Garcia:
Qualquer pessoa sensata não tem dúvida que “The Donald” é uma praga, o mais perverso ex-presidente parasita dos EUA (ou um futuro presidente parasita de segundo mandato). OMG. Estamos cravados no meio da luta acirrada entre os EUA e a China para abocanhar o título de principal potência econômica, mas os EUA, sem dúvida, têm sido o Nº 1 desde 1873, quando Levi Strauss e Jacob Davis “inventaram” a roupa azul índigo mais popular e democrática do planeta. Consequentemente, os EUA, uma terra de migrantes, criaram a cultura pop mais comercializável, desejável e influente da história da humanidade. A cultura do século XX criou lixo sem o qual não podemos viver, envenenando a terra, mas grandes coisas também foram realizadas. Minha borbulhante chama da curiosidade me levou a visitar a Rússia (comunista) durante a faculdade em 1973, depois a China (comunista) em 1979, ano em que Nixon restaurou a diplomacia com o Dragão Chinês. Nunca fui comunista, apenas uma jovem curiosa que queria ver o outro lado das coisas para ampliar minha visão. Em ambos os países, vi nos olhos de jovens russos e chineses admiração por nossos looks da cultura pop, nossas atitudes e o desejo ardente por nossos jeans... Muitas coisas que aconteceram foram previstas pelo visionário escritor americano Alvin Toffler em “Future Shock” (1970), que meu pai leu, passou para mim e sobre o qual tivemos longas discussões e discordâncias. Será que o mundo poderia realmente chegar a esse ponto?

Todos os olhos estão voltados para VOCÊ, querido EUA!
Oramos por vocês, norte-americanos,
até mesmo por aqueles que se arrependerão mais tarde se The Donald...

Todas essas consequências - pelas quais cada um de nós é, sim, culpado - levaram a humanidade ao beco sem saída que testemunhamos pessoalmente ou por meio de nossos celulares a cada segundo, em todos os lugares do nosso lindo planeta. Essa bagunça assustadora que está à nossa porta, dentro de nossos próprios corpos, no ar, na terra, no mar, leva às pinturas que vemos na exposição “desmesura” - ótimo título, a propósito - do artista brasileiro nascido no Rio, Victor Mattina, de 39 anos, altamente inteligente e talentoso, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo.

Não vou estender meu blá blá blá. Estou entusiasmada com seu trabalho - desde a primeira vez que o vi. Obviamente, você tem toda a liberdade para discordar: Não somos indivíduos sensatos, atenciosos, inteligentes e respeitosos?

Primeiro, uma longa entrevista com o artista, que termina com um depoimento de Flávio Morgado com os versos iniciais e finais de “O Monstro”. Morgado, o aclamado poeta carioca de 35 anos, escreveu o poema a pedido de seu amigo Mattina, colado na parede da galeria especialmente para a exposição individual “desmesura”.

O poeta Flávio Morgado e Victor Mattina, em seu ateliê (Outubro de 2024). Foto: Gabriel Secchin.

Entrevista integral de Cynthia Garcia a Victor Mattina e Flávio Morgado:
Quais os fatores que influenciaram este seu olhar bizarro?

Victor Mattina: acho que você se refere às distorções espaciais e alusões a corpos indistinguíveis e amontoados, e tudo isto está no mundo de um modo ou de outro, infelizmente. Basta olhar nos becos, nos templos, no valão, no mangue. A realidade material é bizarra por conta própria. Não penso em apocalipse. Vejo apenas um possível esgotamento de condições para a vida humana na Terra no futuro. Quem já observou a morte que a miséria traz sabe que esta vem em marcha mais lenta, sem trombetas ou ascensor. Por isso é tão importante expandir nosso raio de atenção no mundo.

O que impulsionou sua curiosidade pela arte?

VM: pinto desde 2006. O que me impulsionou foi perceber que havia feito a escolha profissional errada durante o segundo ano de faculdade de Design. E Egon Schiele. Acho que foi através de Schiele que vi, pela primeira vez, um artista que entendia um corpo como um cabide feito de ossos pontiagudos onde deus pendura um manequim aflito, sabe? Seus desenhos na prisão são impressionantes para mim. Na escola não tive sucesso, passei batido por tudo aquilo sem nunca olhar pra trás.

O que admira em artista como Goeldi e Iberê?

VM: sob pena de reduzir dois grandes artistas a nada, gosto da fixação de Goeldi por urubus. São animais pacientes, farejam carniça durante o voo. Imagina só o que é isso. O urubu traz consigo o tempo, a ideia de que algo acontecerá em breve a alguém e que assim ele finalmente terá a chance de comer. Suponho que Goeldi achasse essa indiferença do animal pela morte bonita, engraçada até. Iberê também traz algo de fantasmagórico, mas sempre fincado no humano. Talvez exista uma dimensão mais melodramática em Iberê enquanto em Goeldi exista o farsesco, mas é apenas uma suposição.

Seu trabalho é tão forte, até mesmo devastador. Você tem alguma pintura mais significativa em exposição?

VM: Reparação (díptico), 2024, tem algo peculiar que é a utilização de apenas duas cores que se misturavam muito mal e criavam uma espécie de lama sobre a qual “talhei” duas figuras. Se olharmos por um ângulo é possível ver muitas marcas de dedos na superfície. Esta era uma tela que havia dado errado e por muito pouco seria descartada, mas eu já estava farto e comecei a batucar na superfície da tinta molhada e descobri que conseguia fazer as tintas se misturarem melhor assim. O título é sobre reconquistar algo quase perdido.

Conte-nos sobre alguns de seus projetos de 2025.

VM: Tenho dezenas de pinturas inéditas prontas e muitos projetos guardados, mas só os exibirei se tiver gente disposta a se aventurar comigo na produção. Um projeto guardado e que espera alguém disposto ao risco se chama “Aqui havia um buraco. Já se foi” [There was a hole here. It’s gone now]. Envolve ocupar um hangar com 25 infláveis de mais de quatro metros cada, um holofote, dezenas de pinturas gigantes e o direito de uso de um trecho de uma canção do Ivan Lins (risos). É o meu projeto mais estranho e sombrio. Talvez Ivan vete o projeto quando souber do que se trata, por isso tudo ainda é segredo.

Você é autodidata em arte? Vive de sua arte? Onde fica sua casa no Rio?

VM: Estudei pintura com Renato Ferrari, que me mostrou como se faz quase tudo o que sei. Isso foi de 2006 até 2009, e de lá pra cá aprendi como pude; com amigos pintores, livros de referência e uma certa dose de experimentação. Não vivo do que faço, e acho que se tirasse meu pão das pinturas elas seriam bem diferentes. Já fiz trabalhos de consultoria artística para video games e livros infantis, além de edição de vídeo e animação 3D e 2D. Faço o que posso para continuar, como a maioria dos meus colegas de profissão. Moro em São Conrado e divido ateliê com o pintor Gabriel Secchin na Cinelândia, no Centro do Rio.

Para as ideias fundamentais da exposição, quais artistas o inspiraram?

VM: As ideias para a exposição são: abundância, exuberância, delírio e tempo colapsado em um único instante. Elas vieram basicamente de:

1. O livro A infância de Jesus, do escritor e artista sul-africano J.M. Coetzee, que cita uma passagem de Dom Quixote em que o cavaleiro entra na Caverna de Montesinos, fica lá por alguns minutos e sai contando histórias magníficas sobre todos os anos que passou lá dentro, sobre palácios de cristal etc.

2. Livro do escritor francês Joris-Karl Huysmans “À rebours” (Às avessas), no qual ele relata os delírios decadentes de um aristocrata chamado Des Esseintes. Em uma das cenas, o protagonista decide cravejar o casco de uma tartaruga viva com pedras preciosas, tomando como critério para a escolha das pedras a tonalidade de suas cores e o quão incomuns elas seriam.

3. O interior da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, perto do Largo da Carioca, no centro do Rio.

4. Uma correspondência de 1925 entre Rainer Maria Rilke e seu tradutor polonês, Witold Hulewicz, na qual o poeta boêmio austríaco explica a construção da figura de um anjo para “As Elegias de Duino”. Trata-se de uma criatura capaz de ver o tempo como algo comprimido, como se, ao olhar para uma pedreira, o anjo fosse capaz de ver o magma que deu origem à pedra, o castelo erguido das rochas e as ruínas desse castelo.

Conte-nos sobre sua técnica.

VM: Recentemente meu processo começa com uma produção intensa de imagens em inteligência artificial. Escrevo linhas de comandos para o serviço Midjourney, que funciona a partir de uma plataforma de comunicação online chamada Discord e recebo as imagens em forma de mensagem. É um processo automatizado na ponta da inteligência artificial, então como não há humanos verificando nada, tomo liberdade para estressar e driblar certos parâmetros restritivos do aparelho. Por exemplo, se eu pedir para a IA me dar a imagem que representa a ideia de “probabilidade”, algo sai mal e ela me retorna qualquer coisa. O mesmo ocorre com metáforas e figuras de linguagem. Outro modo de provocar esse tipo de pane é criando uma espécie de “paradoxo lógico” onde peço (A) e ao mesmo tempo (não-A), ou seja, o contrário do que pedi inicialmente. Acrescento a esse pedido contraditório um parâmetro que gera 16 thumbnails por imagem, como numa folha de contato fotográfico. O resultado são aleatoriedades em baixa resolução. Depois o processo continua numa espécie de varredura manual que demora meses onde encontro imagens interessantes e as relaciono em grupos. Os critérios que uso para formar estes grupos são totalmente pessoais e vão desde afinidade estética a fios narrativos que apenas eu sei. Em seguida altero detalhes de cada imagem e faço outros tantos processos que também apenas eu sei para descaracterizá-la de sua origem.

Sobre pintura especificamente, sempre usei óleo sobre tela. Há pouco tempo comecei a testar pintura sobre terbrim, é um tecido com a trama quase tão fechada quanto o linho e um pouco mais barato. O resultado fica ótimo.

Para realizar as maiores pinturas, comecei pelas áreas onde as telas se tocam e pintei as junções, em seguida me concentrei em cada um dos seis pedaços isoladamente, retirando-os um a um do todo. Sabia que funcionariam juntos porque, a grosso modo, sabia exatamente o que estava fazendo desde o início. A surpresa esteve apenas e sempre no momento em que eu encarava a mancha que pintava.

Você exorciza seus demônios ao pintar? Como o Fausto de Goethe, você vendeu sua alma ao diabo?

VM: Acho um pouco engraçada essa construção do diabo como um tabelião que firma cláusulas com sangue, um produtor de contratos espúrios e garantidor de uma espécie de regimento infernal. Diz muito a respeito de como percebemos os burocratas e credores (risos). A única pessoa com quem pactuei foi minha parceira, que me aguenta nas minhas crises de consciência e que me acalma quando acho que tudo que estou construindo é um castelo de cartas. Acho que, em verdade, os meus demônios se manifestam cada vez mais nas pinturas e percebo que são boas criaturas, que gostam de brincar de supor e de fazer de conta. Não amadureceram endurecidas ou amargas, então fazem troça de mim o tempo todo, o que é ótimo.

Explique as pinturas exibidas abaixo:

Arteriograma de Ka“: Quando vejo essa pintura eu penso imediatamente no Egito Antigo e o Barroco mineiro. Acho que ambos momentos da história humana imaginavam a transcendência como um lugar dourado pela luz solar e é daí que surge essa ideia de unir um rito mortuário aliado ao sol numa espécie de esquema.

Elegia I (Verificação)“: Esta é, sem dúvida, a pintura sobre a qual é mais difícil dizer algo. Prefiro não fazê-lo.

Elegia II (Falsa Lembrança)“: Como falei anteriormente, me interessa esse diálogo entre Rilke e Hulewicz sobre o anjo das Elegias de Duíno. Essa criatura que atravessa o tempo e não faz distinção de passado, presente e futuro e vê a origem, história e ruína das coisas como um único momento. É uma espécie de anjo fora da ideia de qualquer categoria humana, o que o torna monstruoso.

O Seminarista“: Essa tela surge a partir do título de um livro homônimo do Rubem Fonseca.

“Futuro”: Adoraria dizer que estava pensando em Goeldi quando fiz esta, mas não seria verdade. Estava pensando na letra de uma canção que diz: “Pay your respects to the vultures/ For they are your future/ Our fathers and mothers have” (COIL – The Last Amethyst Deceiver)

Missa para raios catódicos“: Nos anos noventa meu irmão e eu éramos expostos a muitos quadrinhos ingleses e americanos e era comum ver críticas aos pastores televangelistas, essas figuras que deveriam ser caricatas, mas que na realidade são assustadoras. Hoje em dia parece não haver mais espaço para satirizá-los sem cair no mesmo lugar insípido de dizer que são predadores e parasitas sabendo que isto não vai surtir qualquer efeito, e que é mesmo o aparelho de televisão quem opera uma certa magia.

Autorretrato como devorador de art advisors“: Acho que art advisors têm muito em comum com nutricionistas. Ambos focam no cliente, cuidam de seus apetites, administram dietas e alguns até autorizam certos excessos. A alimentação se torna algo medido, um passo dado com mais critério na construção de um corpo (de trabalhos) mais forte. O devorador, pelo contrário, tem uma fome imensurável. Come o que gosta e tem gosto por tudo. Ao devorar um art advisor, a criatura abre o campo para o ressurgimento do colecionador-devorador, aquela extinta figura que se aventurava e cuja coleção era interessante principalmente porque era, em si, a manifestação de uma fome incomum.

Você vê o mundo a caminho da aniquilação?

VM: De maneira nenhuma. Penso que tanto o negacionismo climático quanto uma visão apocalipticista se acomodam numa certa inatividade. Para estes dois ou não precisamos fazer nada, ou não há nada a se fazer. Acho que há muito o que ser feito, mas as condições para a realização destas tarefas, se não observadas com atenção, tendem mesmo a piorar. Principalmente através da insistência na monocultura e em práticas que desertificam o solo, na automatização de trabalhos humanos e na não conformidade com novas leis de proteção ao trabalhador. As distopias cyberpunk eram pra servir de alerta, não como uma meta a ser batida, afinal.

Mais alguma coisa?

VM: Uma das telas da exposição chama-se Crise e Observação (CEO). Torço para que algum chief executive officer perceba o que está em jogo ali, naquela sombra em fuga.

Obrigado pela entrevista e até a próxima ;)

Depoimento do poeta Flávio Morgado abrindo com “O monstro” (para Victor Mattina), com o primeiro e o último versos do poema aqui publicado, escrito para a mostra “Desmesura” do artista plástico:

I (a dimensão) 

monturo de ossos, inóspita paisagem 
que nos acolhe, o ponteiro da estranheza 
marca meia-noite na consciência e
seis telas declamam, no eco de sua fatura, 
um grande verso de desterro. 

convocação pictórica, desejo 
in-familiar de pertencer a esse
limbo diante da imagem: 
como a morte, 
o anjo de Rilke
e a arte  
               comprimem o tempo

- é isto a desmesura. 

VI (a escala) 

vejamos que é sobre pintura, 
sobre fatura, musgo-óleo 
sobre o algodão cru, tintas Lukas,
MidJourney desordenado, 
mãos da América do Sul. 

pintura de índices, sem sigilo, 
polissemia de exageros 
na caverna de Platão. 

somos nós, 
enredados nesse avesso, 
perdidos nesse labirinto de Dédalo
que damos os nomes. 

presos aos nossos espectros, 
só podemos temer os fantasmas 
que nos assistem:

todo incêndio é Al-Shati
todo túmulo tem sido profético. 

a tela é esse jogo 
na cena lúgubre, 
fisionomia colorida 
de nosso desamparo, 

e o monstro, 
a nós delegado, 
supõe sua face obscura, 
no que mais assume                           

                                       sua vocação de fronteira. 

Flávio, as pinturas de Mattina o inspiraram a escrever “O Monstro”. Conte-nos como surgiu essa simbiose arte-poesia entre vocês dois.

Flávio Morgado: Quando o Mattina me fez o convite para o texto de sua segunda individual, ele foi bem preciso, como costuma ser: “preciso que você escreva porque não quero um lugar fechado, não quero um enquadramento meramente teórico ou uma localização histórica, mas algo que funcione como a própria indefinição das telas”. O segundo passo foi visitar o ateliê e ver de perto os “monstros”. Sua pintura tinha alcançado um outro lugar. Eu que já convivia com ela desde 2011, e o nível da pesquisa e da discussão, embora sempre densos, tinham ganhado uma dimensão, de fato monstruosa. Na escala, no confronto, na materialidade, na proposta de repor esse lugar da pintura como um mundo que se expande e não se nomeia, ou como definimos de imediato: uma pintura de índices.

Mattina se embrenha na discussão pictórica com a mão suja. O que se entende como uma pintura de índices, leia-se a construção da tela como um espaço essencialmente de rastros, de conquista a partir de indícios que não se complementam em uma totalidade apaziguadora da figura, mas na sua assimilação inquieta. Foi aí que entendi que ele queria, ladeando e em diálogo, um poema. Outro espaço polissêmico, aberto, rizomático, indecidível, e que como a pintura, só se explicaria por si. O diálogo não suplementa a tela, eles se retroalimentam.

Nossa proposição é um jogo de filiações amplas, da possibilidade de irmanar duas linguagens no que elas apontam de múltiplo. Como o monstro, é em sua condição desmesurada que se impõe a sua integridade. É preciso esse deslocamento para olhá-lo de frente. O poema tenta dissecá-lo, ao passo que cada parte, na tentativa de se chegar a um lugar, mas se bifurca. Como se em resposta ao corte, Hydra multiplica suas cabeças. Como o monstro, o poema investiga a falha como uma brecha de iluminação. Menos violento que o gesto heróico de matá-lo, o poema é o espelho dessa alteridade monstruosa.

Anotações sobre hibridismo (20-08-2024)

Quando um processo se torna híbrido, duas ou mais forças se alternam, fundem ou contribuem para o aparecimento de um novo processo, agora quimérico. Seja em um motor de alternância eletrico-combustível ou em nova espécie de uvas, a hibridização pela mão humana parece tomar dois processo paralelo e produz um curto-circuito.

Se olharmos exclusivamente para o cruzamento de processos distintos num dado andamento de hibridização, perceberemos ideias contraditórias como poluições harmônicas, infecções generativas ou mutações beneficiárias. Os oxímoros são fruto da união que acomoda as novas condições de existência do sistema híbrido, e que por sua vez negam, parcial ou totalmente, as formas dos sistemas antes da hibridização. É nesta contradição, onde se nega a forma original que surge um interstício para a monstruosidade, e é nesta mesma fresta onde podemos impulsionar o híbrido à dismorfia do novo.

No entanto, o período intersticial é aquele no qual o organismo vivo dobra suas células sobre si mesmo, bifurca caminhos para a formação do cérebro e se volta contra sua própria morfologia, e de repente suas células se atacam, desagregam e o corpo híbrido morre. Em filmes de ficção científica contudo, concretiza-se a terrível possibilidade do organismo triunfar na sua desmesura e dar a ver algo que supera em escala, força e capacidade os cálculos realizados pela húbris humana.

Deste casamento entre a desmesura, a húbris e a dismorfia nascem os trabalhos a seguir (desmesura; exposição individual na Galeria Marcelo Guarnieri; São Paulo - SP, Outubro de 2024). Existem, sem exceção, num período de profundo assoberbamento frente não apenas à virada ontológica anunciada por filósofos, sociólogos e antropólogos, como também ao relativismo científico e tecnológico, nos quais nos voltamos para perspectivas anteriores aos tempos coloniais para descobrir, em muitos casos pela primeira vez, modos fenomenológicos de apreender e decifrar os mundos.

Considero que vivemos justamente num período intersticial, tal qual o da monstrificação de processos híbridos, porque estamos mesmos inseridos numa abertura radical para múltiplas frentes de investigação de nossas crises e metodologias.

Diferente da célebre frase de Antonio Gramsci em Cadernos do cárcere que diz; “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”, imagino não um mundo novo, mas um mundo jovem - mudança sutil mas que fala de um terreno ontológico imaturo e vivaz por natureza, híbrido de todas as cabeças, com músculos de grafeno, tendões de fibra ótica e boca de AMOLED. De mãos sempre humanas e olhos ora sim, ora não. As vísceras, seus processos e humores, fazem malabarismo de cortisol, serotonina e imunosupressores para que todos os órgãos se modifiquem a todo o instante. Talvez estivesse aí o medo de Gramsci - supor o monstro por suas vísceras e temer o futuro como quem perdeu a capacidade de ler seus indícios. Frente a essa criatura, nossos olhos precisam se ajustar para perceber que a instabilidade crônica¹ do monstro é mesmo a morada de ideias e percepções mais amplas, porque existem também fora de categorias.

Tal qual um harúspice, sacerdote da Roma antiga que predizia o porvir através de cuidadoso exame das entranhas de bois, é preciso compreender a capacidade de ler através de superfícies opacas, supor o futuro nas vísceras do monstro vivo através de sua pele por uma anamnese também monstruosa que nunca admite que só existem isso ou aquilo, nem isso e aquilo, mas um Todo híbrido, vivo e vasto, originado da colisão de diferentes ontologias.


[1] “instabilidade crônica dos corpos” é um termo cunhado pelo escritor e pesquisador Luiz Fonseca (PUC-RJ) e refere-se à constante mutação quimérica que permite com que o monstro sobreviva à categorização.

Nós, os cavalos: considerações sobre Inteligência Artificial geradora de imagens

Escrevi o texto abaixo entre Novembro e Dezembro de 2023 e o publiquei em @mattinavictor no instagram. Posteriormente o apaguei dali por conta das diretrizes de serviço da plataforma em relação a publicação da imagem forjada da prisão de Donald Trump, ainda que esta tenha sido contextualizada no âmbito da argumentação. Republico-o integralmente abaixo.

Autalização 22/02/24: corrigi uma confusão entre os termos ‘dataset’ e ‘modelo’ no início do texto e inseri a imagem da matéria da Bloomberg que ilustra o conceito de viés de IA.


Quando os carros apareceram tememos pelo futuro dos cavalos. Com as Inteligências Artificiais, os cavalos somos nós. 

Para entrarmos mais preparados nos debates futuros penso que precisamos considerar os seguintes pontos:

As IA funcionam por datasets, que são volumes assustadoramente grande de dados que treinam modelos de comparação, e para formar esses datasets as IAs precisam varrer a rede atrás de material. Grosso modo varrer a rede e coletar é roubar e isto se chama webscraping. O webscraping é uma prática de mais de 30 anos e que ocupa uma zona cinza da entre a preservação de dados e a pirataria.

O modelo treinado a partir dos datasets compara valores numéricos de bilhões de imagens, mas não as retém propriamente dito, e sim apenas as comparações. É como se um falsário com uma memória fotográfica lesse sem tirar da biblioteca todos os livros de arte e aprendesse tudo a partir das tantas fotografias que viu. Este falsário poderia apenas produzir "trabalhos novos" dos artistas que roubou e também poderia unir as referências e gerar "artistas" derivativos. Portanto as IAs não são nem preservadores de dados nem piratas exatamente, mas falsários.

A meu ver, não há, até o momento, como compensar financeiramente todo mundo de quem as IAs roubam porque todos nós teríamos de ser compensados. Havia um golpe hacker muito famoso na década de noventa que consistia em roubar um centavo de todas as contas do CitiBank, um banco notoriamente pobre no quesito segurança de rede. A massa crítica dos centavos fazia milhões de dólares pingarem insuspeitos na conta do ladrão. Ninguém reclamaria por causa de um centavo e é por isso que o webscraping funciona. "Ah, mas o artista tal teve todo seu material roubado". Sim, ele e todos os outros quadrinistas, ilustradores, fotógrafos, pintores, designers, cineastas, cartógrafos, gravuristas, cartunistas, publicitários, arte finalistas e inclusive gente que posta suas imagens de IA alteradas de volta na web. A suposta falta de critério para o webscraping elimina a possibilidade de imaginar uma justa compensação.

Tanto na forja do falsário quanto na geração de imagens por IA, há um jogo de convencimento e checagem. O falsário pega um chassi antigo, uma tela usada, remove sua tinta original, a suja de poeira e mofo e imagina o artista copiado através dos pigmentos e técnicas da época para tentar ultrapassar o bom juízo do avaliador. Se for ludibriado, o expert perde a disputa. Também a IA passa por um jogo de checagem chamado de rede adversarial, onde um classificador, seja ele programado ou humano, avalia e pontua os resultados gerados pela IA. Não há para as empresas de IA um motivo para fazer parar de crescer seus datasets e aperfeiçoar seus modelos, já que ampliá-los e treiná-los é sinônimo de aumento da capacidade de gerar resultados mais consistentes, ou seja, de vencer o classificador na rede adversarial e fazer isso rápido.

Acontece que um falsário é bem sucedido se for capaz de pôr em dúvida certas decisões do artista forjado. Precisa levar em consideração as limitações, hesitações, erros e arrependimentos de quem imita. A forja convincente esconde decisões humanas imaginadas.

Atualmente o Midjourney, ferramenta usada pelo designer Vicente Pessôa para a capa de Frankenstein que concorreu ao Prêmio Jabuti de 2023 até ter sua inscrição retirada, está na versão 5 de seu algoritmo. A cada versão, o trabalho de convencimento da rede adversarial e do público se torna mais eficaz. A versão número 4 da ferramenta é descrita desta forma no site da ferramenta: "O modelo Midjourney mais recente tem mais conhecimento sobre criaturas, lugares, objetos e muito mais. Ele é muito melhor em acertar pequenos detalhes e pode lidar com prompts complexos com vários personagens ou objetos." Acredito que Vicente tenha utilizado a versão 3 do programa, rudimentar e em desuso. Talvez na época da confecção do livro esta fosse a mais moderna, ou talvez ele tenha optado por utilizar uma versão antiga por mera escolha estética. A questão é que na versão 3 era mais difícil esconder as imprecisões oriundas das alucinações da máquina e qualquer pessoa que se acostumasse aos resultados derivativos das IA detectariam imagens geradas por inteligência artificial como tendo "cara de IA".

capa do livro Frankenstein de Mary Shelley co-criada por Vicente Pessôa e Midjourney

Diferenciar imagens geradas por IA das feitas por humanos torna-se cada vez mais difícil, na medida em que os caminhos algorítmicos que poderiam ser percebidos como "decisões da máquina" se confundem com as escolhas de um artista digital profissional. Cada nova versão supostamente supera os limites generativos da versão anterior, seja através de um aprimoramento das capacidades comparativas da rede generativa, seja através da robustez do dataset, e consequentemente do modelo treinado. Disse que supostamente a nova versão supera os limites da anterior porque em verdade parece existir também o crescente interesse na redução da chance de erro.

Erros aqui são as aberrações que saltam aos olhos - mãos com dezesseis dedos, olhos com duas pupilas etc. Apesar de dizermos que a "máquina alucina imagens" a tendência é a de higienização desta alucinação para que a IA se torne um falsário competente, ainda que limitado. Este limite aumenta também com o número de termos considerados "problemáticos" pelos desenvolvedores das IAs, banidos aberta ou secretamente. No caso do Midjourney, ao solicitar um termo pornográfico ou que tendencie a situações violentas como "cena de crime" ou até mesmo "cirurgia" você receberá um aviso dizendo que a palavra não pode ser usada. Estes limites impostos pela empresa aumentam na medida em que o software "melhora" - a cada versão nova, certos processos são corrigidos e eliminados fazendo com que as versões anteriores sejam capazes de produzir erros de um jeito peculiar, proibido às novas versões.

Existe ainda um outro tipo de erro que não havia sido antecipado - o da forja da situação realística falsa. Esta imagen gerada por IA retrata a prisão do ex-presidente americano Donald Trump. A ferramenta usada foi também o Midjourney e após chamar a atenção da imprensa, o usuário foi banido e a empresa implementou uma política nova onde associações de termos podem ser consideradas problemáticas e então são bloqueadas, mas o solicitante ainda pode apelar pela revisão. Aos poucos delineiam-se os limites éticos da implementação e do uso da ferramenta enquanto a suposta capacidade emulativa do aparelho resseca.

detalhe da imagem forjada pelo Midjourney

As IAs de geração de imagem são consideradas "de baixo risco" quando comparadas às médicas ou de transporte. Para o bom funcionamento basta se certificar que o aparelho se ocupa de coibir os resultados problemáticos e funcione sem propagar erros. No entanto, há ainda mais um problema em curso - o de hackers contra as redes adversariais. Anish Athalye mostrou em seu github (https://github.com/anishathalye/obfuscated-gradients) como fez para "poluir" o treinamento do classificador que avalia imagens geradas por IA a "confundir" a imagem de um gato com a de guacamole e assim pôs em dúvida a robustez de segurança das redes adversariais.

descrição visual do projeto de perturbação adversarial por Anish Athalye

Isto é grave para os desenvolvedores porque representa um ataque de fora contra parte fundamental do aparelho, que por força do ataque teria voltado a um estágio anterior, supostamente superado, de imprecisão comparativa por infecção. Remediar esta questão é complicado e pede a reformulação do aparelho e dos termos de serviço para incluir ação jurídica, o redirecionamento do capital da empresa para outro modelo adversarial mais seguro, e de pressão política por mais regulamentação contra agentes externos.

Um forte ponto desta regulamentação deseja determinar quem pode e quem não pode ter sua própria IA, seja ela feita em casa ou encomendada. Para isso, é necessário construir o argumento de que IAs são potencialmente perigosas se cairem nas mãos erradas. O clamor pela regulamentação raramente admite adubar o terreno para um oligopólio e tampouco ouvimos falar de leis contra o web scraping. Existe a possibilidade de remoção de acesso a determinado conteúdo se for comprovador que pertença à propriedade intelectual de um artista que o reclama, mas me pergunto se o modelo também será treinado novamente para esquecer o material do plágio. Aposto que não. A responsabilização propriamente dita parece sempre recair sobre um "mal funcionamento do aparelho", que ao menor sinal de problema é atualizado e "corrigido".

A correção do aparelho em si não é um problema, mas blinda as práticas dos profissionais por trás de softwares caixa-preta. Dada a natureza dos programas digitais, que são somatórios volumosos de funções matemáticas complexas, os processos técnicos ficam invisibilizados atrás de suas interfaces gráficas de usuário (GUI). Com as redes neurais, o volume dos processos e a velocidade fogem do controle e certos erros das IAs causam enorme prejuízo também às empresas. O CEO da Google, Sundar Pichai, ao dizer publicamente em Abril deste ano que ninguém da empresa realmente compreende o modo como a IA Bard formula algumas de suas respostas acabou explicando porque meses antes a mesma IA afirmou erroneamente durante uma demonstração pública que o telescópio James Webb produziu a “primeira imagem de um planeta fora do sistema solar”, o que prejudicou em 100 bilhões de dólares a avaliação da Google pelo conglomerado Alphabet Inc., que a detém.

O reconhecimento de padrões que formula a base do algoritmo comparativo tanto se utiliza quanto reforça estereótipos, o chamado "viés de IA". A ponte probabilística que liga um termo a uma imagens faz transparecer o modo como o classificador da rede adversarial se distancia de uma ideia de inteligência para tornar-se um forjador de simulacros que dependem de meios engenhosos para driblar a tendência da máquina à resposta empobrecida de realidade. Veja em (https://www.bloomberg.com/graphics/2023-generative-ai-bias/).

O viés da Inteligência Artificial reforça associações excludentes tanto raciais quanto de gênero

Também as IAs são capazes de depredar a percepção de valor do trabalho de artistas visuais, substituindo a criação por derivativos automáticos. A despeito dos erros que produz acidentalmente, as IAs tornam evidente o desequilíbrio competitivo entre os processos humanos e não-humanos, e isto é algo que está programado no aparelho. Sobre seus construtores conseguimos dizer que quando solicitamos a geração de imagem, estamos optando por um serviço cujas políticas são tornadas claras apenas quando as coisas vão mal e que são reescritas sob pena de ação judicial e/ou boicote, ainda que muitos dos problemas mais evidentes careçam de solução efetiva.

Nas últimas semanas muito aconteceu no mundo das IAs e o que escrevi ficará datado em breve, se já não o estiver. Recentemente a impressionante IA francesa Mistral disponibilizou seu modelo sem qualquer custo através de um magnet link de torrent. Não compreendo o que está por trás da startup ou de seu MoE (Mixture of Experts), mas se pudermos ter nossas IAs, não precisaremos endereçar a terceiros nossos prompts futuros e isto é algo a se levar em conta. Evito abrir novas considerações porque penso que a Mistral e outras novas IAs de código aberto mudarão todo o ambiente e a discussão técnica, ética e legal.

Dito isto preciso esclarecer que eu mesmo acho a geração terceirizada de imagens por IA interessante como terreno fértil à surpresa e ao caos da aleatoriedade. Pessoalmente encaro as IA como componentes de um processo dialógico parecido com tentar convencer um chef de cozinha temperamental a bolar um prato ruim. Funciona assim - dou uma ideia e mais um somatório de acasos que provocam algo diferente do que eu havia pensado de início. Preciso que ele tente o maior número de combinações esdrúxulas porque quero que erre. Quase nunca consigo utilizar o que a IA me dá, mas às vezes a sua ideia é melhor do que a minha. É um processo que me provoca a produzir algo lateral ao que eu faria sem sua companhia.

Prefiro ter na IA um assistente desajustado a quem posso dar cada vez mais chances de falhar, porque quando trabalhamos juntos é como se minha imaginação ganhasse uma órtese que a obrigasse a considerar insistir na aparência das coisas como uma ilusão assumida e abertura para algo ao mesmo tempo incompleto e inconcebível. Uma espécie de "miragem ciborgue" que por vezes carrega semelhanças em tom e conteúdo à visão mística, alienada de promessas de libertação.

Esta iconolatria pura assistida por máquinas não é automaticamente niilista a meu ver, porque devolve ao espectador humano o poder de articulação de uma superfície que virtualiza o sentido enquanto mantém a aparência do mundo. É na superfície paradoxal de algo produzido pelo jogo de correlações entre a máquina matemática e a nossa linguagem que uma imagem pode ser ao mesmo tempo mutante e inexorável.