desmesura : Galeria Marcelo Guarnieri, São Paulo — SP (2024).

 

o monstro 
para Victor Mattina 

I (a dimensão) 

monturo de ossos, inóspita paisagem 
que nos acolhe, o ponteiro da estranheza 
marca meia-noite na consciência e
seis telas declamam, no eco de sua fatura, 
um grande verso de desterro. 

convocação pictórica, desejo 
in-familiar de pertencer a esse
limbo diante da imagem: 
como a morte, 
o anjo de Rilke
e a arte  
               comprimem o tempo

- é isto a desmesura. 


II (a correspondência) 

em si, a fera se abraça: 
o dilema da tela se propõe
(e se resolve) em matizes 
de verde e terra, compondo 
sua interrogação à medida que avança.

nós que estamos diante dela, 
na aflição do fenômeno, 
à espera de uma paixão alegre, 

dissolvidos no indecidível. 

o corpo da tinta almeja outro total
e estamos presos nessa dimensão:
a da dúvida, a da presença prometida, 
com o medo na mão da moldura. 

em sua capa de perjúrio, 
frente a nós, 
o monstro é o que nunca adormece, 
mas segue em paz e, em vigília, 

com seu vício no bote. 


III (a feitura) 
o monstro é uma falha, 
e a falha é do juízo de nossa autarquia. 

um senso normativo sobre o que descuida 
sobre a desmedida, sobre o que sobra e se mantém. 
(como o alado touro na asa de um anjo: 
não tem porquê, mas não tem pra onde ir)

e o monstro é um curto-circuito, 
pane-gerativa, fome disfuncional, 
desconexões verbais que ainda dizem, 
urro animal, úlcera algorítmica,
boca-todos-os-dentes: 
autorretrato enquanto devorador de art advisor -
raiva-a-todos-os-olhos

filho pródigo de nossas contradições, 
ele repõe a si no que o negamos:
assoberba seu tamanho 
respondendo a comandos 
que mais nos assemelham

- o monstro assenhora o espelho. 


IV (a técnica) 

rumo entalado de um seixo, 
eixo de projeção que não abriga,
reminiscências de folhagem
que nos endossam uma floresta em ruínas,

mas o fogo é gélido. só o olho arde. 

a alma conta um templo
onde se amotinam os mortos. 
banquete posto a uma solidão de caveiras 
em cenas de susto que reluzem ouro:
quem os poliu? 

desamparo de cavaleiro delirante 
gesto ajustado no desgoverno e
elegância à explosão abstrata do azul, 
para se ter na cor
sua crise e observação. 


V (a paleta) 

tons terrenos, 
escola de florença 
ante o projetor
sussurro de detalhes 
e pincéis finos
de comovido esforço

registro fluido, 
que no convívio da mancha
afere a pulsação. 


VI (a escala) 

vejamos que é sobre pintura, 
sobre fatura, musgo-óleo 
sobre o algodão cru, tintas Lukas,
MidJourney desordenado, 
mãos da América do Sul. 

pintura de índices, sem sigilo, 
polissemia de exageros 
na caverna de Platão. 

somos nós, 
enredados nesse avesso, 
perdidos nesse labirinto de Dédalo
que damos os nomes. 

presos aos nossos espectros, 
só podemos temer os fantasmas 
que nos assistem:

todo incêndio é Al-Shati
todo túmulo tem sido profético. 

a tela é esse jogo 
na cena lúgubre, 
fisionomia colorida 
de nosso desamparo, 

e o monstro, 
a nós delegado, 
supõe sua face obscura, 
no que mais assume                           

                                       sua vocação de fronteira. 

— Flávio Morgado (Agosto de 2024)

 

[-] Escrito pelo poeta Flávio Morgado especialmente para a ocasião da individual ‘desmesura’, na Galeria Marcelo Guarnieri (São Paulo, SP. Outubro 2024).


[Release]

A Galeria Marcelo Guarnieri tem o prazer de apresentar, entre 04 de outubro e 08 de novembro de 2024, "desmesura", segunda exposição individual de Victor Mattina em nosso endereço de São Paulo. A mostra, que reúne dez pinturas inéditas e um díptico, é acompanhada pelo poema “O Monstro”, de Flávio Morgado.

Em “desmesura”, Mattina explora, através da pintura, a qualidade da representação monstruosa e a condição de liberdade sob a qual reside a figura do monstro. Suas composições se constroem a partir de visões fragmentadas, vultos, manchas, criaturas antropomórficas e associações improváveis, como se estivéssemos diante de um mundo que, ainda que orientado pelos mesmos símbolos que compõem o nosso, operasse sob uma outra lógica. É nesse limiar entre o reconhecível e o absurdo que se sustentam as pinturas de Mattina, e é nessa impossibilidade de categorizar suas figuras, como em “Capital amanhece sob um novo sol” ou seus encontros estranhos, como em “Missa para raios catódicos”, que o artista enxerga uma potencial emancipação da imagem. Embora tenha como base de sua prática a pintura figurativa, Victor Mattina não a utiliza como ferramenta para uma representação transparente, pelo contrário, é o seu domínio da técnica que lhe permite aproximar a figuração ao inverossímil. “Em 'Arteriograma de Ka' há uma cena algo barroca com corpos amontoados em primeiro plano, em frente a uma espécie de templo. É uma pintura de índices, alusiva a uma ideia de antiguidade sem nunca dizer onde ou sobre quem.”, observa o artista.

O Poema “O Monstro”, de Flávio Morgado, que acompanha a exposição, é fragmentado em seis partes, em diálogo com a montagem de “Elegia I” e “Elegia II”, pinturas que possuem mais de 4 metros de comprimento cada, também divididas em seis partes. O poema percorre alguns aspectos das pinturas de Mattina – A dimensão, A correspondência, A feitura, A técnica, A escala, A paleta –, aspectos estruturais que apontariam para uma análise mais categórica da obra, mas que por meio da linguagem poética, se libertam de definitivos, transbordando os seus limites. Em “desmesura”, texto e imagem se reconhecem pela recusa das funções que deveriam exercer em um mundo normativo. Criam, juntos, uma espécie de limbo visual. Como escreve Morgado na primeira parte do poema: “monturo de ossos, inóspita paisagem / que nos acolhe, o ponteiro da estranheza / marca meia-noite na consciência e / seis telas declamam, no eco de sua fatura, / um grande verso de desterro.”

Em diálogo com a mostra “desmesura”, de Victor Mattina, serão apresentadas no mezanino da Galeria um conjunto de obras de Marcello Grassmann (1925-2013), Oswaldo Goeldi (1895-1961), Guima (1927-1993) e Iberê Camargo (1914-1994), artistas brasileiros que, por meio da gravura e da pintura, também exploraram a dimensão monstruosa da representação figurativa.