Anotações sobre hibridismo (20-08-2024)

Quando um processo se torna híbrido, duas ou mais forças se alternam, fundem ou contribuem para o aparecimento de um novo processo, agora quimérico. Seja em um motor de alternância eletrico-combustível ou em nova espécie de uvas, a hibridização pela mão humana parece tomar dois processo paralelo e produz um curto-circuito.

Se olharmos exclusivamente para o cruzamento de processos distintos num dado andamento de hibridização, perceberemos ideias contraditórias como poluições harmônicas, infecções generativas ou mutações beneficiárias. Os oxímoros são fruto da união que acomoda as novas condições de existência do sistema híbrido, e que por sua vez negam, parcial ou totalmente, as formas dos sistemas antes da hibridização. É nesta contradição, onde se nega a forma original que surge um interstício para a monstruosidade, e é nesta mesma fresta onde podemos impulsionar o híbrido à dismorfia do novo.

No entanto, o período intersticial é aquele no qual o organismo vivo dobra suas células sobre si mesmo, bifurca caminhos para a formação do cérebro e se volta contra sua própria morfologia, e de repente suas células se atacam, desagregam e o corpo híbrido morre. Em filmes de ficção científica contudo, concretiza-se a terrível possibilidade do organismo triunfar na sua desmesura e dar a ver algo que supera em escala, força e capacidade os cálculos realizados pela húbris humana.

Deste casamento entre a desmesura, a húbris e a dismorfia nascem os trabalhos a seguir (desmesura; exposição individual na Galeria Marcelo Guarnieri; São Paulo - SP, Outubro de 2024). Existem, sem exceção, num período de profundo assoberbamento frente não apenas à virada ontológica anunciada por filósofos, sociólogos e antropólogos, como também ao relativismo científico e tecnológico, nos quais nos voltamos para perspectivas anteriores aos tempos coloniais para descobrir, em muitos casos pela primeira vez, modos fenomenológicos de apreender e decifrar os mundos.

Considero que vivemos justamente num período intersticial, tal qual o da monstrificação de processos híbridos, porque estamos mesmos inseridos numa abertura radical para múltiplas frentes de investigação de nossas crises e metodologias.

Diferente da célebre frase de Antonio Gramsci em Cadernos do cárcere que diz; “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”, imagino não um mundo novo, mas um mundo jovem - mudança sutil mas que fala de um terreno ontológico imaturo e vivaz por natureza, híbrido de todas as cabeças, com músculos de grafeno, tendões de fibra ótica e boca de AMOLED. De mãos sempre humanas e olhos ora sim, ora não. As vísceras, seus processos e humores, fazem malabarismo de cortisol, serotonina e imunosupressores para que todos os órgãos se modifiquem a todo o instante. Talvez estivesse aí o medo de Gramsci - supor o monstro por suas vísceras e temer o futuro como quem perdeu a capacidade de ler seus indícios. Frente a essa criatura, nossos olhos precisam se ajustar para perceber que a instabilidade crônica¹ do monstro é mesmo a morada de ideias e percepções mais amplas, porque existem também fora de categorias.

Tal qual um harúspice, sacerdote da Roma antiga que predizia o porvir através de cuidadoso exame das entranhas de bois, é preciso compreender a capacidade de ler através de superfícies opacas, supor o futuro nas vísceras do monstro vivo através de sua pele por uma anamnese também monstruosa que nunca admite que só existem isso ou aquilo, nem isso e aquilo, mas um Todo híbrido, vivo e vasto, originado da colisão de diferentes ontologias.


[1] “instabilidade crônica dos corpos” é um termo cunhado pelo escritor e pesquisador Luiz Fonseca (PUC-RJ) e refere-se à constante mutação quimérica que permite com que o monstro sobreviva à categorização.