Lucifer: (2023-202*).

Considero-te enquanto uma figura sólida, de existência terrena e real, caída porque decididamente apátrida e eterno detentor de uma modesta tocha que ilumina o mundo mediado pela visão. Único anjo verdadeiramente adulto, tu não portas a arrebatadora luminosidade dos anjos cavaleiros ou o engenhoso fogo prometeico da técnica, mas uma chama da cor da manhã que fulgura as imperfeições das esferas celestes, acidentadas por colidirem a todo instante com os fragmentos do universo em giro. 

Contam-me que dos primeiros raios da tua aurora meus antepassados foram obrigados a reposicionar a todos nós, aqueles que morrem, para fora do centro de uma antiga hipótese planetária para que o Sol tomasse nosso lugar no sistema. Foi desta demoção da condição de protagonista cósmico para um papel menor de coadjuvante acidental que a tua luz removeu um grau de soberba do espírito humano, e nos pôs mais sãos diante do espetáculo da invicta e resplandecente magnitude solar. Julgam-me apressadamente aqueles que pensarem que te exalto porque desejo subverter crenças, leis ou códigos morais em causa própria. Não tenho estes poderes e tampouco me interessam os martelos ou os templos. Peço que tu também não julgues mal aqueles que tentarem conspurcar minha relação contigo.

Convoquei-te aqui para pedir-te desculpas por não tê-lo avisado anteriormente que dei teu nome a uma pintura que ocupa hoje a parede de uma galeria de arte, e que isto deve sugerir a uma parte do público que eu tenha vínculos lamacentos contigo em busca de fortuna. Tu não percebes a diferença entre abundância e a miséria, e já que o brilho do ouro e da urina surgem do teu lume, tu baixas a tocha igualmente, na busca pelo nobre metal ou pelo animal que se alivia.

Nomeei este meu trabalho em teu respeito porque almejo fazer do meu parco candeeiro algo próximo da tua aurora. Persigo-te e tento emular a tua sagrada lentidão ao mover-me sobre a terra. Prezo não apenas pelo teu brilho, mas por tuas sombras - as quais sei não serem ilusórias, como disse o grego, mas coisas-em-si. Então não me entregues nada além da revelação parcial e do teu dom de rir ao reconhecê-la incompleta. Teus feixes revelam à visão apenas uma metade do mundo enquanto sugerem que o Todo não seja uno, e isto já é o suficiente para que te maldigam, mas eu te conheço bem e sei que tu habitas também todas as outras metades ocultas. E isto me basta.

Vídeo: Victor Mattina (Brasil, 2023)
Texto:
Leonor Bencatel (Portugal, 1996)