Antes do Fórum: Paço Imperial, Rio de Janeiro - RJ (2017).

 

          “Esse erro perpétuo, que é precisamente a ‘vida’, não dá suas mil formas somente ao universo visível e ao universo audível, mas também ao universo social, ao universo sentimental, ao universo histórico etc. [...] Só temos do universo visões informes, fragmentárias, que completamos com associações de ideias arbitrárias criadoras de sugestões perigosas.”[1]

 

O trabalho de Victor Mattina não permite a zona de conforto; explora a surpresa e o espanto e mostra de antemão que o artista não acredita na obra feita meramente para embelezar o mundo. Faz parte da estética fundamental do artista escolher situações relacionadas a zombarias, rituais, crimes, saúde mental e morte.

Nesta exposição, várias telas de diferentes tamanhos dão forma a uma intensa narrativa pictórica. Baseadas em fotografias criminais de peritos forenses, as obras podem ser vistas como uma película de cinema editada com vários cortes, incluindo os espaços reflexivos da parede em branco. Apesar do jogo de associações criado invariavelmente pelo espectador a partir da ambiguidade entre a visão técnica do perito forense e a obra, cada uma das telas é individual e tem valor particular como corte incisivo em uma realidade carregada de ameaças, um campo de atuação cheio de vestígios.

Os objetos ensanguentados, quebrados ou derrubados, simplesmente caídos ou aparentemente abandonados, instalam o caos na ordem doméstica. Vê-se que os objetos configuram a única força organizadora em meio ao complexo desenvolvimento dramático, e que o estado de atenção é sempre mantido em atividade e revisitado como se as obras ajudassem a reencenar o crime repetidas vezes em cada uma das telas.

As cenas produzem reflexões sobre o ato de viver intensamente o momento anterior ao crime, tanto na vítima quanto no criminoso, e um nível máximo de tensão, uma energia vital levada ao ápice de sua potência. A articulação de uma verdade precária surge na constatação de que a área de cada uma das cenas é uma trama abstrata na qual os traços de um crime geram antes de tudo um campo de força, um território dinâmico e elástico que dá forma a um conflito.

E, nesse sentido, a sala da exposição age como um fórum e se equilibra sobre três elementos fundamentais: uma contestação do objeto ou lugar, uma interpretação que traduz a linguagem das coisas e uma assembleia pública que passa a ser organizada com a entrada do espectador em cena. A prosopopeia acontece e os objetos inanimados adquirem narrativa psicológica, tornam-se as principais testemunhas.

Na sala de exposição as perguntas e respostas acabam surgindo e pendulam entre o espaço expositivo, o conteúdo das telas e o público; tudo é mediado por posições, ângulos e ligações lógicas. Questões sobre cumplicidade, julgamento, renúncia e impotência suscitam uma situação de incerteza no espectador. Apesar de lançar interrogações a diversos processos políticos e sociais, Victor Matina não tem o objetivo de denunciar injustiças, de julgar ou até mesmo de revisar a história, mas sim e apenas o de deformar e alargar indefinidamente o tempo de uma ação, talvez mostrando-nos que podemos morar eternamente nessa paralisia.

Evidências criminais vistas por meio de uma representação artística podem interferir em fenômenos protocolares e expandir a percepção, indicando que a lida com questões contemporâneas e burocráticas merece a visita dos artistas. O diálogo com uma obra como a intervenção da artista turca Banu Cennetoğlu, na fachada ancestral do Museu Fridericianum em Kassel durante a Documenta 14, é evidente, e em alguma medida Mattina também parece dizer que estar seguro no mundo de hoje é assustador: Being Safe is Scary.

O lugar do fórum, por sua vez, não é mais a arena limitada de um edifício, e também não se restringe à sala da exposição. Ele se expande especulativamente à vasta abstração da mídia eletrônica, onde o diálogo continua, se desdobra e promove um novo formato de fórum, no qual várias comunidades agem, reagem e interagem diante de diversas situações mediadas por suas culturas, seus preconceitos, seus conceitos e suas crenças. A articulação contemporânea da verdade pública se faz, assim, de modo cada vez mais evasivo, concretizando-se ainda como o conceito de pós-verdade, termo cunhado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich.

O trabalho de Victor Mattina, como quer Walter Benjamin, mostra que o presente jamais cessa de se reconfigurar diante de uma imagem – por mais factual, por mais forense e inapelável que seja o momento –, até porque o passado jamais deixa de adquirir novas configurações e a imagem só é cogitável como construção da memória.

 

Evangelina Seiler

[1] Marcel Proust. A fugitive. Em busca do tempo perdido. Volume VI. Editora Globo, 2012, p. 204-5.

 

Curadoria e texto de Evangelina Seiler