ponto-zero/ponto-nulo: Galeria Marcelo Guarnieri, São Paulo (2021).

 

Se fizermos o exercício de realizar uma breve genealogia da crise da percepção que nos acomete, poderíamos eleger como ponto de partida alguns momentos específicos. O primeiro deles estaria na modernidade que funda a razão ocidental calcada em uma sensibilidade blindada para a qual os fenômenos do mundo deveriam ser desprezados em favor de uma elaboração puramente mental. A diluição do mundo exterior em estados cognitivos (herança da filosofia cartesiana) legou uma experiência do “real” empobrecida. O sujeito moderno forja um corpo impermeável aos sentidos, divorciando-se assim do ambiente exterior. A segunda etapa desta breve genealogia seria composta por um par de acontecimentos: o aparecimento das grandes cidades e o advento da reprodutibilidade técnica na passagem do século XIX para o XX. A temporalidade acelerada das metrópoles e o excesso de estímulos visuais proporcionado pela reprodutibilidade de imagens instauraram uma série de mecanismos que iriam entorpecer o organismo, nublar o olhar, reprimir a memória: o sistema cognitivo da sinestesia – que engloba não só a visão, mas o paladar, o tato, a audição, o olfato – tornava-se, antes, de anestesia [1] . Ora, quem lê este texto sabe bem o quanto esse cenário se acentua no século XXI em meio a um cotidiano no qual nos distanciamos da realidade sensível, na medida em que habitamos, a maior parte das horas, zonas digitais cujas telas inundam as nossas retinas com uma quantidade vertiginosa de estímulos.

A exposição ponto-zero/ponto-nulo, de Victor Mattina, tem como alvo crítico e poético esse contexto. Tanto o conjunto de pinturas quanto a instalação audiovisual apresentadas na Galeria Marcelo Guarnieri possuem como pano de fundo um diálogo com essa crise que, sendo mais rigorosos, ultrapassa a esfera da percepção. Não se trata tão somente de um atrofiamento do olhar, ou ainda de um estreitamento do nosso vínculo sinestésico com o entorno. No limite, essa crise que tem início na percepção finda por obturar toda sorte de imaginação, ameaçar o lugar da nossa constituição psíquica e gerar uma imensa passividade em meio à inquietação generalizada. Pois, sejamos diretos, esse estado de entorpecimento, de constante déficit de atenção em um mundo 24/7, nada mais é do que um estado necessário para o controle social. A anestesia não é individual, é coletiva, não é involuntária, mas programada. Afinal, quando a própria realidade é transformada em narcótico, o torpor torna-se a norma. Nesse sentido, podemos afirmar que todos os trabalhos de Mattina aqui reunidos, ao seu modo, sem alarde, sem narrativas diretas, transitam por um território central da vida política da atualidade.

Paremos para nos aproximar um pouco das obras em exibição. O uso de tons rebaixados, não correspondentes à saturação de cores que o olho humano está condicionado a associar aos objetos ao seu redor, provoca um primeiro estranhamento, amplificado a seguir pelos títulos que fazem referência a diferentes áreas do saber, como a botânica e a entomologia, a anatomia humana, a medicina moderna e a cultura europeia do medievo. Ao longo das telas, fragmentos de corpos animais e vegetais são retratados em enquadramentos inusuais, compondo situações que desconcertam o olhar. Atraem e repelem, a um só tempo. Notem, por exemplo, Ispariz (2020). O título, ligado à Língua Ignota criada por Hildegard von Bingen (1098-1179) [2] , denomina espírito (spiritus). Aqui, Mattina forma uma espécie de curto-circuito sardônico ao sobrepor uma ideia metafísica e sobrenatural à representação um tanto quanto distorcida de um buquê de flores dentro de uma lata de lixo. Já em Éter (2020), cujo título evoca a substância química que funcionou como anestesiante na medicina, testemunhamos pés elevados ao redor do que parece ser uma mesa de cirurgia. Assim, nos é dado a ver o sentido figurado da palavra “etéreo”, como aquilo que está suspenso no ar. Existe ainda nessa pintura um jogo de associação entre o desenho da fórmula química do éter e a forma como os pés estão dispostos em relação à mesa hospitalar.

Esses brevíssimos exemplos revelam a polissemia contida nas telas hoje reunidas. Polissemia, ou multiplicidade de sentidos no interior de uma mesma obra, cujo lugar no mundo não é um lócus dócil, transparente, de rápida apreensão. Ao contrário, por meio de uma linguagem pictórica que se filia à opacidade, Mattina busca perturbar o sistema sensorial do sujeito contemporâneo cada vez mais embotado pela saturação imagética. O singular em sua produção está no fato de que não se trata de compreender como burlar este estado de anestesia dos sentidos e assim, utopicamente, escapar da fadiga sensorial que nos acomete. Ao contrário, a ideia que guia o seu programa poético é a de ultrapassar o mecanismo de segurança de um olhar sempre blindado para que possamos nos relacionar diretamente com o esgotamento que caracteriza a experiência atual. Somente atingindo voluntariamente essa espécie de ponto-nulo poderemos, quem sabe, recobrar algum vínculo vivo com o real em uma época na qual a realidade parece ter se tornado um feed sem fim de estímulos narcóticos – ou o inverso, a fantasmagoria das imagens digitais parece ter assumido a posição de realidade objetiva.

Por isso o fato de todas as obras de ponto-zero/ponto-nulo se endereçarem de forma insubmissa ao olhar, forjando um constante caráter de obstáculo. Para tanto, afirmam a potência do opaco, da interrupção, da estranheza, no lugar da transparência, do automatismo, do familiar. Citando o arguto vídeo que abre a exposição, “precisamos restabelecer a intimidade libidinosa... com uma nova estética. Uma estética que seja capaz... de nos emancipar do programa”. O programa é esse que nos transforma aceleradamente em zumbis autômatos apartados da dimensão sensível, corpórea, aterrada. Na sua insubmissão, a obra de Victor Mattina instaura uma trilha insuspeitada com vias a despertar um elo vital cotidianamente adormecido.

Luisa Duarte

[1] Ver BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de “A obra de arte” de Walter Benjamin. In: Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

[2] Na exposição, podemos ver a obra batizada de Língua ignota (2020), que faz referência direta à língua produzida pela abadessa Hildegard von Bingen, no século XII, cujo idioma é composto por um alfabeto de 23 letras denominadas litterae ignotae (letras desconhecidas).

 

Curadoria e texto de Luisa Duarte